Julgamento do processo BES arranca na terça-feira

Salgado, de “príncipe da banca” ao banco dos réus.

Outubro 14, 2024

O julgamento do processo principal do BES inicia-se na terça-feira e ninguém arrisca prever quando termina, pois envolve 18 arguidos, 733 testemunhas, 135 assistentes e mais de 300 crimes.

Este megaprocesso, que já vai nos 215 volumes após uma acusação com mais de quatro mil páginas, começa a ser julgado mais de uma década após o colapso do Grupo Espírito Santo (GES), em agosto de 2014.

O caso tem como principal arguido o ex-presidente do BES Ricardo Salgado, que foi acusado de 65 crimes, entre os quais associação criminosa, corrupção ativa, falsificação de documento, burla qualificada e branqueamento.

A morosidade do processo já fez tombar algumas acusações, tendo no início deste mês o Juízo Central Criminal de Lisboa declarado a prescrição de 11 crimes, três dos quais imputados pelo Ministério Público (MP) ao antigo presidente do GES Ricardo Salgado.

O ex-banqueiro, que estava inicialmente acusado de um total de 65 crimes, vai agora ser julgado por 62 ilícitos criminais, após terem prescrito dois crimes de falsificação de documento e um de infidelidade.

O levantamento dos crimes em risco de prescrição recentemente realizado pelo MP indica ainda que Ricardo Salgado pode ver cair, em finais de novembro próximo, mais um crime de falsificação e outros dois crimes no final de dezembro.

Em janeiro de 2025 prescrevem mais três crimes de falsificação de documento, no final de fevereiro cai um de infidelidade e até 28 de março tombam outros três de infidelidade.

Volvida mais de uma década sobre a derrocada do BES/GES e o início da investigação, há mais crimes em risco de prescrever até ao final do primeiro trimestre de 2025, nomeadamente dos arguidos Francisco Machado da Cruz, Amílcar Morais Pires, Pedro Góis Pinto, Pedro Almeida e Costa, Cláudia Boal Faria, Etienne Cadosch, Michel Creton, João Alexandre Silva e Nuno Escudeiro.

Apontado como um dos maiores processos judiciais da história da justiça portuguesa, este caso, investigado pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) do MP, juntou no processo principal 242 inquéritos, (que foram sendo apensados) e reuniu queixas de mais de 300 pessoas, singulares e coletivas, residentes em Portugal e no estrangeiro.

Devido à vastidão de crimes, arguidos, assistentes, testemunhas, factos e documentos que integram este caso, o processo informático do BES tem oito terabytes de informação, correspondente a muitos milhares de ficheiros.

Entretanto, a sala de julgamento do caso BES no Tribunal Central Criminal de Lisboa, no Campus de Justiça, Lisboa, vai ter 67 lugares para advogados de defesa e dos assistentes, além de acolher 16 arguidos singulares e algum público.

O julgamento será transmitido em direto para duas salas de imprensa nos edifícios A e B do Campus de Justiça, com capacidade para 32 profissionais de comunicação social, e estão a ser avaliados outros espaços para permitir o acompanhamento à distância por mais assistentes e público em geral.

Para o julgamento, presidido pela juíza Helena Susano, foi afeto, em exclusivo, um escrivão auxiliar, que será secundado, quando tal se revele necessário, por uma escrivã auxiliar e pelos demais oficiais de justiça em exercício de funções na unidade de processos em causa.

Os sistemas de som, registo de prova e comunicações à distância têm vindo a ser testados, tendo sido disponibilizados equipamentos informáticos e tecnológicos, incluindo computadores e ecrãs para visualização de documentos. O sistema de videoconferência está em fase de finalização.

Segundo o Ministério Público, a derrocada do GES terá causado prejuízos superiores a 11,8 mil milhões de euros.

Salgado, de “príncipe da banca” ao banco dos réus

O caso BES chega a julgamento 10 anos após a queda do banco, que aconteceu com estrondo, apesar dos sucessivos escândalos, fez Salgado cair do pedestal de “princípe da banca” e levou a fortes críticas ao Banco de Portugal.

Ao longo do ano de 2013 e depois nos primeiros meses de 2014, os sinais de problemas no Banco Espírito Santo (BES) e no Grupo Espírito Santo (GES) tornaram-se evidentes.

O apertar do cerco do Banco de Portugal (BdP) revela buracos financeiros em empresas do grupo e a promiscuidade entre áreas financeira e não financeira. Empresas do grupo tinham dívidas ocultas e ativos sobreavaliados (caso da ESI – Espírito Santo International) e o BES usava os seus clientes para financiar empresas do grupo através da colocação de dívida, como papel comercial.

É também por essa altura que se revelam mais escândalos ligados ao presidente do BES, Ricardo Salgado. É conhecido que recebeu milhões de euros (mais tarde soube-se que foram 14 milhões de euros) do construtor civil José Guilherme e torna-se pública a luta de poder com o primo José Maria Ricciardi.

Apesar da instabilidade e dos danos reputacionais, Salgado faz tudo para se manter na presidência do BES e tenta publicamente dar uma imagem de confiança, ajudado pela tese de que o banco não é afetado pela parte não financeira do grupo.

Ao longo dos mais de 20 anos à frente do BES, o banqueiro nascido numa família da alta finança tinha criado reverência em seu redor e um poder tentacular. A aura do trabalhador infatigável, que todos os dias chega cedo e sai tarde do gabinete na Avenida da Liberdade (decorado com pintura flamenga do século XVII), somada à elegância, sobriedade, voz pausada e palavras medidas, ajudavam ao carisma e valeram quase um culto.

“Notava-se que era como que tratado ou visto como um príncipe no setor”, disse o ex-ministro das Finanças de Governos PS (de José Sócrates), Teixeira dos Santos, num reportagem da SIC de 2023 (“A agenda”). Uma ideia partilhada pelo economista João Duque: “Era um príncipe de salão, ele não andava, deslizava… Podíamos encontrá-lo às sete ou oito da noite e parecia que tinha acabado de tomar duche, barbear-se e vestido de lavado”, relatou.

Contudo, a degradação do grupo e da sua imagem levam a que, em junho, seja forçado pelo BdP a sair da presidência, a poucos dias de fazer 70 anos.

No início de julho, o banco central ainda diz que “a situação de solvabilidade do BES é sólida”. Contudo, a derrocada prossegue, as ações tombam em bolsa, empresas do grupo entram em reestruturação, o suíço Banque Privée Espírito Santo atrasa o reembolso a clientes que investiram em dívida da ESI e começa a fuga de depósitos no BES. O escândalo vira internacional, com o Financial Times e o Wall Street Journal a noticiarem que os mercados internacionais “caem com receios sobre o banco português”.

A nova gestão do BES (liderada por Vítor Bento) vai descobrir que a situação é ainda mais grave e, na noite de 30 de julho de 2014, as contas do primeiro semestre revelam prejuízos de 3,6 mil milhões de euros e põem a nu irregularidades financeiras e legais.

Ainda assim, nessa noite, o governador do BdP, Carlos Costa, garante por escrito que o banco vai continuar. O banco e o grupo estariam por dias.

Em 31 de julho, o Banco Central Europeu (BCE) anuncia ao Banco de Portugal que o BES será suspenso das operações de política monetária, o que na prática determina o seu fim. Perante isso, Carlos Costa informa Frankfurt da medida de resolução e articula com o Governo o processo.

Perto das 23:00 de domingo 03 de agosto de 2014, o governador anuncia ao país uma solução “urgente” para o BES. O BES e o grupo faliam na praça pública, a história centenária terminava naquele dia.

O BES torna-se o “banco mau”, em que ficam os ativos considerados “tóxicos” e depósitos de administradores e membros da família. É criado o banco de transição Novo Banco para onde passam os ativos “bons” (muitos revelar-se-iam problemáticos) e os depósitos dos clientes.

A rápida e estrondosa queda deixa na mira auditores, poder político, mas sobretudo reguladores, em especial o Banco de Portugal e o seu governador.

Nos meses seguintes, será acusado de supervisão ineficaz, de não ter afastado Ricardo Salgado atempadamente, de ter feito pequenos acionistas e clientes do retalho acreditar no banco apesar de já saber dos problemas.

“No fim de semana fui chamado de gatuno. Não roubei nada a ninguém. O Banco de Portugal não roubou nada a ninguém”, disse Carlos Costa na comissão parlamentar de inquérito, em 2015.

Já Salgado começou por se defender na praça pública – “O leopardo quando morre deixa a sua pele. E um homem quando morre deixa a sua reputação”, afirmou na comissão parlamentar de inquérito. Em 2015 considerou na contestação a um processo do BdP que este agiu “como uma espécie de COPCON dos tempos modernos” contra “ricos e poderosos – mas nos anos recentes apresenta-se como um homem só e debilitado.

Em fevereiro deste ano, compareceu em tribunal (caso EDP) com ar doente, passada lenta, de mão dada com a mulher. Em janeiro, ao juiz, Maria João tinha contado que o marido é dependente, perde-se em casa e por vezes não se lembra do nome dos netos. “Tinha um marido fantástico e hoje em dia tenho um bebé grande para tratar”, disse.

Salgado cumpriu 80 anos em junho, tendo festejado na Suíça, na casa da filha e do genro (o multimilionário Philippe Amon, dono da empresa de tintas com que se imprimem as principais notas do mundo), segundo o Correio da Manhã. É ainda a filha Catarina quem, contou o jornal, dá 40 mil euros por mês à mãe para despesas.

Dez anos depois da queda do BES, o principal processo-crime contra Salgado (o julgamento do caso BES/GES), em que é acusado de 65 crimes, arranca na próxima terça-feira (15 de outubro).

Quanto à queda do BES, segundo cálculos feitos pela Lusa, esta custou até agora cerca de 8.000 milhões de euros aos cofres públicos, resultado sobretudo da capitalização inicial do Novo Banco e das recapitalizações feitas pelo Fundo de Resolução no Novo Banco.

De acordo com o Ministério Público, no processo que agora começa a ser julgado – considerado o principal num universo de seis processos criminais – está em causa um valor superior a 11,885 mil milhões de euros em vantagens auferidas com a prática dos crimes.

A defesa de Ricardo Salgado invocou o seu diagnóstico de Alzheimer para pedir que aquele que já foi apelidado de “dono disto tudo” pudesse ser dispensado do julgamento, mas o tribunal “não comprou” o argumento e a juíza que preside ao coletivo que vai julgar o caso, Helena Susano, determinou que Salgado terá que comparecer e responder presencialmente por 62 crimes, entre os quais corrupção.

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